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Imagine um homem que um dia foi extremamente mal, errôneo em seus atos, frio em suas ações delituosas, violento, perigoso e, enfim, um criminoso. Estamos falando de JOÃO BOCA DE ESGOTO, o ESTUPRADOR DO PARQUINHO.
JOÃO BOCA DE ESGOTO, na década de 50 (cinquenta), especificamente em 15/01/1950, aos seus 20 (vinte) anos de idade, numa bela tarde de Domingo, ficou a observar crianças a brincar num parquinho municipal, na doce e pequena comarca de Xique-Bonito, no Estado da Bahia.
Impressionado com uma menina de 06 (seis) anos de idade, a pequena JOANA CANDURA, o rude JOÃO BOCA DE ESGOTO arquitetou um modo de sequestrá-la, estuprá-la e estrangulá-la até a morte nas redondezas do parquinho municipal, onde existia uma pequena mata, debaixo de um arbusto.
O crime ocorreu sem um mínimo de remorso e misericórdia por parte do Autor/Psicopata/Pedófilo, JOÃO BOCA DE ESGOTO.
Três dias depois do ocorrido, a polícia encontrou o corpo da pobre e pequena JOANA CANDURA.
Por meio de várias vestígios deixados por JOÃO BOCA DE ESGOTO, as autoridades conseguiram prendê-lo.
Assim, após 02 (dois) anos de Prisão Provisória, JOÃO BOCA DE ESGOTO foi condenado pelo Plenário do Júri a cumprir uma pena de 30 (trinta) anos de reclusão, com regime inicial fechado.
O dito criminoso, por ter sido Réu Primário, ficou 03 (três) anos em Regime Fechado[1], eis que já havia cumprido 02 (dois) anos de Prisão Provisória, mais 05 (cinco) anos em Regime Semi-Aberto, depois ficou mais 05 (cinco) anos em Regime Aberto e, em 20/01/1965, 15 (quinze) anos depois do crime, obtivera por Direito o Livramento Condicional. Assim, JOÃO BOCA DE ESGOTO “pagou o que devia a sociedade” e ficara livre para sempre em 20/01/1980, aos 50 (cinquenta) anos de idade.
Livre, JOÃO BOCA DE ESGOTO decidiu recomeçar a sua vida, mudou-se de Xique-Bonito/BA e foi residir em outro Estado, na cidade de Canto-Bonito/GO, onde teve a oportunidade de trabalhar de ajudante de pedreiro.
Nessa nova vida, JOÃO BOCA DE ESGOTO constituiu uma família, onde teve 03 (três) filhos, e fez 10 (dez) anos de tratamento psiquiátrico, eis que não queria mais se lembrar de seu passado e nem do que fora capaz de cometer com JOANA CANDURA, se encontrando hoje como um cidadão de bem, arrependido do seu crime e “quite” com a sociedade.
Vinte e cinco anos depois de JOÃO BOCA DE ESGOTO ter ficado livre e recomeçado a sua vida, ou seja, no ano corrente de 2005, quando já se encontrava com seus 75 (setenta e cinco) anos de idade, o mesmo fora procurado por um programa de televisão (Linha-Furada) que queria entrevistá-lo para realizar um documentário com atuação de atores para contar a história do caso JOANA CANDURA.
Por óbvio, JOÃO BOCA DE ESGOTO não aceitou que a história do caso JOANA CANDURA fosse revivida com a exposição de seu nome e de sua imagem, muito menos quis conceder entrevista ao dito programa televisivo, eis que, agora, se considera um homem de bem, pai de família e que não deseja sofrer, novamente, represarias da sociedade por algo que “já pagou”. Contudo, mesmo contra a sua vontade, a emissora de TV Gol, invocando os Princípios Constitucionais da Liberdade de Expressão Artística e de Comunicação, do Direito de Acesso à Informação, da Impossibilidade de Restrição à Manifestação do Pensamento e dos Princípios da Produção e Programação de Emissoras de Televisão, realizou uma super produção do caso JOANA CANDURA.
Assim, em 2006, foi ao ar o dito programa, tendo sido o Autor do crime do caso JOANA CANDURA apontado como estuprador e assassino que fora condenado, mas que ficara preso pouco tempo em vista da atrocidade que havia cometido.
Depois da exibição do programa do caso JOANA CANDURA, seu assassino, JOÃO BOCA DE ESGOTO, deixou de ter a sua paz: foi insultado pela comunidade onde residia na frente de seus filhos; ignorado por seus amigos; rejeitado na igreja a qual frenquentava; expulso do grupo que jogava xadrez na praça municipal de Canto-Bonito/GO; e vítima de tentativa de homicídio por parte de “justiceiros”, bem como de agressão física e moral por parte de vários “vingadores”.
Assim, infeliz com o destino que tivera após a exibição do programa Linha-Furada, JOÃO BOCA DE ESGOTO ajuizou AÇÃO DE REPARAÇÃO CIVIL COM PEDIDO DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS em face da TV GOL S/A.
Em sua Petição Inicial, JOÃO BOCA DE ESGOTO alegou o seguinte: que levou-se a público situação que já havia superado, uma vez que havia feito 10 (dez) anos de tratamento psiquiátrico para esquecer o ocorrido; e reacendeu na comunidade onde reside a imagem de estuprador e assassino, bem como o ódio social, ferindo, assim, seu Direito à Paz, ao Anonimato e a Privacidade Pessoal, com prejuízos diretos também a seus familiares. Alegou, também, que essa situação lhe prejudicou sobremaneira em sua vida social, não tendo mais convívio com seus amigos e sendo rejeitado por seus filhos, além de ter sido obrigado a desfazer-se de todos os seus bens e abandonar a comunidade para não ser morto por "justiceiros" e “vingadores” e também para proteger a segurança de seus familiares. Disse, ainda, que a exposição de sua imagem e nome no mencionado programa foi ilícita e causou-lhe intenso abalo moral, pleiteando, assim, uma indenização no valor de 500 (quinhentos) salários mínimos.
O Juízo de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Canto-Bonito/GO, sopesando de um lado o Interesse Público da notícia acerca de "evento traumático da história nacional", e, de outro, o "Direito ao Anonimato e ao Esquecimento" do Autor, entendeu por bem mitigar o segundo, julgando improcedente o Pedido Indenizatório.
Diante de um Conflito de Valores Constitucionais (Direito de Informar e Direito de Ser Esquecido, derivado da Dignidade da Pessoa Humana, prevista no art. 1º, III, da Constituição Federal, bem como nos arts. 5º, incs. IV, V, IX, X e XIV, arts. 220 e 221, também da Carta Política), a advogada de JOÃO BOCA DE ESGOTO, DRA. BERENICE GANHA TUDO, decidiu recorrer da Decisão do MM Juiz “a quo”, eis que entendeu por bem que o Princípio da Proporcionalidade seja aplicado ao Conflito de Valores para que haja a justa harmonização dos Princípios Constitucionais em jogo, ou seja, para que um Bem Jurídico (Informação “vs” Vida Privada, Intimidade e Imagem) se pondere sobre o outro, visto que houve abuso do Direito de Informar e violação da imagem do cidadão na edição de programa jornalístico contra a vontade expressamente manifestada de quem desejava prosseguir no esquecimento, devendo o Princípio da Informação ser mitigado.
Em grau de Apelação, o TJGO entendeu que:
Ementa:
“(...) 3. Recorre-se ao juízo de ponderação de valores para solver conflito (aparente) de princípios de Direito: no caso, o da livre informação, a proteger o interesse privado do veículo de comunicação voltado ao lucro, e o interesse público dos destinatários da notícia; e o da inviolabilidade da intimidade, da imagem e da vida privada. A desfiguração eletrônica da imagem do autor e o uso de um pseudônimo (como se faz, em observância a nosso ordenamento, para proteção de menores infratores) consistiria em sacrifício mínimo à liberdade de expressão, em favor de um outro direito fundamental que, no caso concreto, merecia maior atenção e preponderância. 4. Das garantias fundamentais à intimidade e à vida privada, bem assim do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, extraíram a doutrina e a jurisprudência de diversos países, como uma sua derivação, o chamado "direito ao esquecimento", também chamado pelos norte-amercianos de "direito de ser deixado em paz". Historicamente, a construção desses conceitos jurídicos fez- se a bem da ressocialização de autores de atos delituosos, sobretudo quando libertados ou em vias de o serem. (...). 5. (...). 6. O direito de imagem não se confunde com o direito à honra: para a violação daquele, basta o uso inconsentido da imagem, pouco importando se associada ou não a um conteúdo que a denigra. Não sendo o autor pessoa pública, porque a revelação de sua imagem já não traz novidade jornalística alguma (pois longínqua a data dos fatos), o uso de sua imagem, a despeito da expressa resistência do titular, constitui violação de direito a todos oponível, violação essa que difere da ofensa moral (CF. art. 5º, V, da CF). 7. Tomando em linha de conta a centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana, a severidade dos danos decorrentes da exibição do programa televisivo na vida privada do autor (relançado na persona de "suspeito" entre as pessoas de sua convivência comunal), e o conteúdo punitivo-pedagógico do instituto da indenização por dano moral, a verba aparentemente exagerada de R$ 50.000,00 se torna adequada - tanto mais em se tratando do veículo de comunicação de maior audiência e, talvez, de maior porte econômico. (...)”[2].
Justa foi a Decisão do juízo “ad quem” em face de JOÃO BOCA DE ESGOTO, eis que a Tutela da Dignidade da Pessoa Humana na Sociedade da Informação inclui o Direito de Ser Deixado em Paz. Ora, o ser humano e a vida em sociedade são bem mais inventivos que o estático Direito Legislativo! A sociedade evolui e, com isso, novas feições são aplicadas aos Valores e Direitos acolhidos pela Constituição! Dessa forma, não pode uma pessoa ser prejudicada em sua Personalidade, porque o Legislativo não acompanhou a evolução social!
O caso de JOÃO BOCA DE ESGOTO é um exemplo de evolução social, porque, anteriormente, tinha-se o conceito de que “informação velha não vira notícia”, adágio que a evolução no caso em tela está a desmentir. Ora, a Proteção Constitucional da Personalidade não admite que a imprensa explore, por tempo ilimitado, de qualquer ser humano, fazendo com que este seja relembrado após anos de esquecimento!
No caso em tela, o Direito a Personalidade irá se sobrepor a Liberdade de Expressão, porque, apesar dos dois Princípios serem de índole constitucional[3], a Carta Política mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III), a Dignidade da Pessoa Humana como - mais que um Direito - um Fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os demais Direitos posteriormente reconhecidos, apesar da Informação, Livre de Censura, ter sido inserida no seleto grupo dos Direitos Fundamentais (art. 5º, inciso IX, da Constituição Federal).
O Direito a Personalidade é indispensável ao desenrolar saudável e pleno das virtudes psicofísicas que ornamentam a pessoa, no dizer de Gilberto Haddad Jabur[4]. Além disso, trata-se de um Direito Subjetivo, de natureza privada, da pessoa de defender o que lhe é inerente, ou seja, a sua vida, a sua integridade, a sua sociabilidade, a sua reputação ou honra, a sua imagem, a sua privacidade, a seu nome etc., tudo conforme o disposto no art. 5º, caput e inc. X, da Carta Política. Tais Direitos transcendem a própria vida, pois são protegidos, também, após o falecimento, segundo Sílvio de Salvo Venosa[5].
Nunca haverá de se admitir invasão da privacidade de alguém, bem como a utilização de sua imagem e de seu nome sem sua expressa autorização, como ocorreu com JOÃO BOCA DE ESGOTO. Ademais, no caso em que há o confronto entre Liberdade de Informação e os Direitos da Personalidade, onde ambos transitam pelos domínios do Direito Constitucional, onde de um lado há o legítimo interesse de “querer ocultar-se” e, de outro, o não menos legítimo interesse de se “fazer revelar”, a questão poderá ser bem solucionada a partir da exegese dos arts. 11, 12, 17, 20 e 21, do Código Civil.
Não importa mais a lembrança do que JOÃO BOCA DE ESGOTO fez a décadas atrás, mas sim o fato de que ele “pagou o que deve” a sociedade e hoje é um cidadão de bem, merecendo, portanto, ser esquecido para sempre e não reviver mais a dor do passado, ou seja, ser deixado em paz.
Abrir antigas feridas por meio da exploração comercial e econômica é como matar lentamente uma pessoa que já recomeçou a sua vida e tem o Direito de alcançar a felicidade!
Não se faz justo que JOÃO BOCA DE ESGOTO sofra ameaça à sua ressocialização (Direito de Desenvolvimento da Personalidade)! É o que reza o art. 93 do Código Penal, art. 748 do Código de Processo Penal e art. 202 da Lei de Execuções Penais, que lhe assegura o sigilo dos registros sobre seu processo e condenação.
O Direito de Ser Deixado em Paz foi reconhecido no Brasil por meio do Enunciado nº 531 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. A justificativa de determinado enunciado foi a seguinte:
Artigo: 11 do Código Civil
Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.
“As recordações da vida privada de cada indivíduo pertencem ao seu patrimônio moral e ninguém tem o direito de publicá-las mesmo sem intenção malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se narra a vida”, nas palavras célebres de René Ariel Dotti[6], concluindo este que:
“O direito ao esquecimento, como uma das importantes manifestações da vida privada, estava então consagrado definitivamente pela jurisprudência, após uma lenta evolução que teve, por marco inicial, a frase lapidar pronunciada pelo advogado Pinard em 1858: ‘O homem célebre, senhores, tem o direito a morrer em paz’”!
Ora, se o Interesse Público em torno de JOÃO BOCA DE ESGOTO havia desaparecido, merece este ser deixado de lado, como desejar. Ele há de ter o “Direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária” (Gilmar Ferreira Mendes[7]).
Destarte que, é óbvio, que essa consideração não se aplica àqueles crimes históricos, que passam enfim para a história, como é o exemplo nazista. “Aliás, pelo contrário, esses são casos que não devem mesmo ser esquecidos” (Claudio Luiz Bueno de Godoy[8]).
De qualquer forma, será por meio da ponderação e do estudo de cada caso concreto que saberemos se um Princípio Constitucional poderá se sobrepor relativamente a outro para que haja uma justa aplicação de ambos de forma harmoniosa, onde se leve em consideração a eficácia horizontal de ambos, afastando, para sempre, a exploração populista da mídia, o que será, com certeza, a solução das vicissitudes do passado.
Artigo originalmente publicado em: https://portalsbn.com.br/noticia/direito-em-suas-maos-do-direito-de-ser-esquecido-para-sempre
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Drª Beatricee Karla Lopes é Advogada Criminalista e Civilista – OAB/ES 15.171; pós-graduada em Penal e Civil; Escritora de Artigos Jurídicos; Membro Imortal da Academia de Letras da Serra-ES; Comendadora Cultural e Membro Imortal da Academia de Letras de São Mateus-ES; Comendadora Cultural da ONG Amigos da Educação e do Clube dos Trovadores Capixabas; Personalidade Cultural de 2017 do 3º Encontro Nacional da Sociedade de Cultura Latina do Brasil; Personalidade Artística e Cultural 2018; colunista da Página Jornalística Censura Zero – www.censurazero.com.br; Poeta; e Escritora Literária. Contato: (27) 9.9504-4747, e-mail: beatriceekarla@hotmail.com, site: beatriceeadv.wixsite.com/biak e Instagram: @direitocensurazero.
[1] Naquela época bastava cumprir 1/6 da pena em Crimes Hediondos. Hoje, depois de 28/03/2007, o criminoso primário deve cumprir 2/5 da pena e 3/5 se reincidente, conforme modificação trazida pela Lei nº 11.464/07 a Lei nº 8.072/90.
[2] Íntegra verídica da Decisão dos Embargos Infringentes do caso Jurandir Gomes de França X Globo Comunicações e Participações S/A, onde o programa Linha-Direta produziu documentário sobre o Autor da ação de quando foi envolvido no caso “Chacina da Candelária”.
[3] Importante dizer que ambos são relativos.
[4] JABUR. Gilberto Haddad. Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pg. 28.
[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. 7º ed. v. 1. São Paulo: Atlas S.A., 2007, pg. 169.
[6] DOTTI, René Ariel. Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92.
[7] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 374.
[8] GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2001, pp. 89-90.
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